É muito fácil ferir susceptibilidades


Crianças são sempre um motivo de enorme alegria para toda a família. Pais, tios, avós, bisavós, primos, todos celebram o nascimento e querem acompanhar de perto a vida de cada novo membro, enchendo-o de amor e mimos. Só que, por vezes, essas mesmas crianças são fonte de desentendimentos e susceptibilidades feridas.

É que toda a gente gosta de expor a sua opinião, contar a sua história, ensinar aos pais como se faz isto ou aquilo, divagar sobre pedagogia, mas nem toda a gente tem a capacidade de respeitar ideias divergentes das suas e, acima de tudo, as decisões dos pais.

A partir do momento em que fica grávida, uma mulher tem de aprender rapidamente a sobreviver ao turbilhão de opiniões, conselhos e gostos contraditórios de vários membros da chamada “família chegada”. E se a coisa já não é fácil quando se trata da nossa família chegada, com quem temos todo o à-vontade, torna-se particularmente difícil quando se trata da família chegada do pai da criança. E isto só piora depois do nascimento.

Podia acabar a crónica aqui, dizendo que os pais é que sabem o que é melhor para os seus filhos e que devem aprender desde cedo a pôr os outros no seu lugar. Só que isso não é verdade. Não é verdade porque, a seguir aos pais, os avós, tios e outros membros directos da família, são as pessoas mais importantes na vida dos nossos rebentos. São fonte de eterno amor, paciência e ensinamento. São os abraços e os mimos que não temos tempo para dar. São segurança, brincadeira e diversão. São consolo quando nos zangamos com eles e não podemos dar o braço a torcer.

Assim, uma das coisas que uma mãe tem de aprender rapidamente é a relativizar todas as coisas que os familiares fazem e que a tiram do sério. Claro que há que impor limites quando é algo realmente grave e que ponha em causa a segurança ou saúde da criança. Sobretudo se esse membro da família está diáriamente com a criança e influencia directamente o seu comportamento e educação. Mas em quase todos os outros casos, há que aprender a fechar os olhos e a ser tolerante. Aqui vão algumas dicas para gerir situações muito típicas.

A peça de roupa abominável 
Quem já não recebeu uma peça de roupa abominável? Daquelas que jurámos nunca vestir aos nossos filhos? Pior: uma peça de roupa abominável feita à mão pela pessoa que oferece, tão contrária ao nosso gosto que parece que foi feita de propósito para nos irritar. Valerá a pena ofender quem ofereceu com um grito de horror ou um pedido de troca? Por mais que queiramos embirrar, aquela peça foi feita ou comprada com amor e isso é que conta.
Solução: Sorrir, agradecer e vestir a peça à criança da próxima vez que estivermos com quem a ofereceu. Se for algo assim tão abominável, podemos vestir só no carro ou já dentro do elevador. A criança não vai ficar traumatizada por ter sido vista em público em tais preparos e a paz familiar reinará.

A excitação antes de dormir
Depois do almoço de família, já de si agitado, chega a hora da sesta. Mas ninguém (tirando a mãe) parece querer perceber. A brincadeira continua, há sessões de cócegas e jogos de apanhada, há mais um beijinho lambuzado e uma careta engraçada, há um nervoso miudinho a apoderar-se da mãe, que sabe que agora, em vez de demorar quinze minutos a adormecer a criança, vai demorar uma hora.
Solução: Respirar fundo, pegar na criança e dizer "Pronto, agora vamos dormir a sesta está bem? Diz adeus bebé. Já voltamos para brincar mais um bocadinho.". O importante é dizer isto com um sorriso, mas com firmeza. É normal que quem só vê a criança de vez em quando queira aproveitar cada momento até à última. Que mal tem se a sesta naquele dia é mais curta? Uma vez não são vezes.

A prova de alimentos proibidos
Os primeiros anos de vida de uma criança estão cheios de primeiras vezes e é muito giro ver a sua reação perante algo completamente novo. Vamos dar-lhe a provar limão, para ver como reage? E chocolate? E um pacote de açúcar? E molhar a pontinha da chucha num copo de whisky? (Esta era a brincadeira preferida do meu avô, que levava a minha mãe aos arames e é responsável por eu ainda hoje abominar tal bebida)
Solução 1: caso sejam alimentos alergéneos ou que o pediatra desaconselhou, não há que ter medo de o dizer. Mas sem exaltação. A ciência evolui todos os anos e há coisas que antigamente ninguém sabia que faziam mal e que hoje os estudos mostram ser prejudiciais. Por mais brincalhão que seja o avô, vai compreender e respeitar uma ordem médica.
Solução 2: caso sejam alimentos que não fazem mal, o melhor é respirar fundo, permitir a brincadeira uma vez e depois dizer gentilmente, "Pronto, que giro, o bebé já provou. Agora vamos brincar com outra coisa para não fazer mal à barriguinha". E fugir com a criança para longe da tentação.

As indirectas face a métodos de puericultura alternativos
É muito fácil receber olhares de horror perante métodos de puericultura alternativos, sobretudo das avós, que não cuidam de um bebé há cerca de 30 anos e desconhecem as novas teorias dos pediatras. E se, por um lado, há coisas estranhas que podem realmente surpreender os mais velhos, como dar banho no balde ou transportar o bebé no pano (coisas que eu fiz e aconselho), outras há que derivam de novas descobertas, como o nunca deitar o bebé de barriga para baixo, não esterilizar biberões ou não tratar o umbigo do recém-nascido, que é exactamente o oposto do que se fazia no tempo das nossas mães.
Solução: Respirar fundo, explicar o porque da nossa opção e permitir que, no que toca aos métodos alternativos, quem está a cuidar da criança faça a coisa como lhe dá mais jeito. Na creche as educadoras também fazem como entendem. Olhos que não vêem, coração que não sente.

As indirectas face a métodos pedagógicos alternativos
Também há quem goste de mandar umas indirectas às nossas opções educativas, que, por vezes, não são tão indirectas assim. "Mas porque é que não dás chucha? Tu usaste chucha até aos 4 anos e tens uns dentes óptimos" ou "Qual é o problema de ver televisão ou brincar com o iCoiso?" ou "Se ele não tem sono porque é que o vais deitar? Deixa-o ficar mais um bocadinho".
Solução: Respirar fundo (sim, esta crónica parece uma aula de Yoga, mas, de facto, a respiração profunda resulta) e explicar cordialmente o porquê da nossa opção, mesmo que, por dentro, só nos apeteça gritar "mas o que é que tens a ver com isso???". Ceder na aplicação das regras, uma vez por outra, também não faz mal nenhum. Toma lá o iCoiso por mais dez minutos.

A defesa de ideologias antagónicas
Este ponto tem tanta importância quanto o nosso nível de dedicação a uma causa. Por exemplo, no outro dia fiquei sem palavras quando ouvi o avô dizer o seguinte ao meu filho, enquanto viam televisão: "Ah, que coelhinho tão giro, está a ver? É muito lindo e fofinho, como aqueles que o avô caça para o Tiago papar." Ora, eu não sou da PETA, nem sequer vegetariana, mas dizer a uma miúdo de dois anos que se matam coelhinhos fofinhos para ele comer, parece-me ligeiramente aterrorizador. Sobretudo quando um dos bonecos preferidos do dito menino é precisamente um coelho. Mas como não sou fundamentalista, não disse nada. Aliás, confesso que tive mesmo foi vontade de rir.
Solução: educar os nossos filhos para a diversidade cultural e liberdade de expressão. Não é porque o avô caça, que ele se vai tornar caçador. Nem é por saber que se matam animais fofinhos para comer que ele se vai tornar vegetariano. O avô é alentejano de gema, daqueles que sonhava em caçar desde criança, que foi forcado e gosta de touradas. E tem quase 70 anos. Não vale a pena dizer-lhe que jamais em tempo algum vamos deixar o nosso filho aproximar-se de uma arma de fogo ou de uma arena. Pelo menos até ao dia em que convidar o neto a fazê-lo. O mesmo se aplica a outras ideologias e tradições, que parecem naturais para certas pessoas ou gerações e completamente retrógradas para nós.

Conclusão: no que toca aos nossos filhos, haverá sempre atitudes dos nossos familiares que nos vão irritar e haverá sempre decisões nossas um pouco excessivas. Por isso, a palavra de ordem é relativizar. As crianças devem ser motivo de alegria e de união da família, e nunca causa de desentendimentos ou ódiozinhos de estimação. Se bem que algumas pessoas parece que fazem de propósito para nos irritar.



Texto originalmente publicado no livro "Coisas Que Uma Mãe Descobre (e de que ninguém fala)", Bertrand Editora, 2015

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