Ninguém vai gostar tanto da tua família como tu


Quando nos apaixonamos verdadeiramente por alguém, não há nada que nos pare. Tudo é cor-de-rosa, tudo é maravilhoso, tudo é superável, até ao belo e inesquecível dia em que conhecemos a família do nosso amor.

Ao contrário dos amigos, dos empregos, dos vícios, a família é daquelas coisas que não podemos mudar. Pior, nem sequer podemos escolher. E se, até certa idade, os nossos familiares directos são a nossa grande referência, com o passar dos anos começamos a aperceber-nos dos seus defeitos, das suas manias, de todas as coisas que nos tiram do sério. Mas lá está, mãe é mãe, pai é pai, irmão é irmão, e, no final, o amor é cego e ajuda-nos a perdoar todas as suas falhas.

O mesmo pode não acontecer com os pais e irmãos da nossa alma gémea. Para estes, o nível de tolerância é sempre menor e o nível de crítica inversamente proporcional, porque entrar numa família nunca é a mesma coisa do que nascer nessa família. Há toda uma história por trás de cada piada, por trás de cada afecto e, sobretudo, por trás de cada boca foleira. São precisos anos e anos para conhecer todas as tradições, achar graça a todas aquelas pessoas e não levar a mal o tipo de humor (ou a total ausência dele, nalguns casos) que se pratica naquele lar. E se a coisa lá vai funcionando durante o namoro, tudo muda de figura quando há um compromisso mais sério e se começam a passar natais e fins-de-semana juntos.

Quanto mais sério fica o relacionamento, mais os pais percebem que os seus bebés se foram embora para sempre. Ou seja, para os nossos sogros seremos sempre ladrões de bebés. Pior, ladrões de bebés que fazem lavagens cerebrais, porque todas as decisões que os filhos tomam contra as expectativas dos pais, passam a ser vistas como ideias do recém-chegado membro. Quem nunca ouviu um "Aquilo é ideia dela, que o meu filho nunca faria uma coisa dessas"? Ou um "desde que foi viver com ele, nunca mais foi a mesma"? Assim, por mais amorosos que os nossos sogros sejam, há alturas em que um certo nível de hostilidade acaba sempre por transparecer.

Depois temos o tempo que passamos com a nova família. Se, por um lado, ajuda a que todos se conheçam melhor, por outro lado, cria uma falsa familiaridade cujo resultado nem sempre é bonito de ver. Gostamos que nos façam sentir parte da família, mas não gostamos que nos digam coisas como "já te chamei para a mesa três vezes". Podemos dizer à nossa mãe que ela está a ser uma grande chata, mas não o podemos dizer à nossa sogra. Queremos desabafar com o nosso mais-que-tudo acerca da idiotice que o nosso irmão fez, mas não toleramos que seja o outro a apontá-la. Porque, lá está, eu posso dizer mal dos meus, mas mais ninguém pode.

E é aí que surgem os problemas entre o casal. Começa com o "pede lá à tua mãe que não implique com os meus piercings" e acaba com o "nem penses que volto a por os pés naquela casa!". Passa do "amor, pára de implicar com a minha irmã" para o "e a tua é uma cabra!", entre muitas outras coisas horríveis como o "és igualzinha à tua mãe", "parece que estou a ouvir o teu paizinho", "vocês estão bem uns para os outros".

Espera aí! Vocês? Então não era suposto ser "nós"? Não é isso que significa uma família unida? É. Em teoria. Na prática, a verdade é só uma: a pessoa com quem escolheres viver nunca vai gostar tanto da tua família quanto tu. E o inverso também se aplica. Por isso, o melhor é guardares as tuas opiniões para ti, a não ser que sejam expressamente solicitadas. E, lembra-te, quando ouvires um "epá, o meu irmão é mesmo estúpido", não caias na tentação de concordar de imediato. Diz antes algo como "deixa lá, ele estava só a ter um dia mau", mesmo que seja a maior das mentiras e o dito seja, efectivamente, uma besta quadrada.


texto originalmente escrito para A Farmácia de Serviço

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