Primeiro capítulo de "O Estranho Ano de Vanessa M."


1.

- Tédio: um peso que me invade a alma e engole a vontade. A cada minuto que passa, transforma-se em impaciência. Um nervoso miudinho que faz parar a respiração na exacta proporção em que o coração acelera. «O que é que tens?» «Nada.» «Então, porque é que estás a suspirar?» «Porque me apetece. Porquê? Agora também não posso?» O que vale é que ele não me responde. Depois de quinze anos de vida em comum, finalmente percebeu que há alturas em que o melhor é estar calado. Porque é que estás a suspirar, pergunta ele. É preciso ter lata. É preciso estar completamente alheado do que se passa à sua volta. É preciso ser muito egocêntrico. Não sei se é por ser homem. Será que a vida é assim tão mais fácil para os homens? Claramente não têm de se preocupar com a celulite, com as unhas partidas, com o cabelo. Já não bastava a sorte de poderem fazer xixi em tudo quanto é canto, também não têm de se preocupar com as sobrancelhas, os cremes, a maquilhagem, as meias de vidro, esconder o peito para não parecer atrevida, mas não o suficiente que pareça uma frígida. Um homem de cabelo desgrenhado e barba por fazer, desde que tenha aquele cheiro a banho tomado, é sexy. Uma mulher de cabelo desgrenhado e que não teve tempo para ir à depilação, mesmo com cheiro a banho tomado, é uma desmazelada, nojenta, que devia ter vergonha de sair assim à rua. Então nesse caso, porque é que as mulheres não podem entrar uma hora depois do que os homens nos seus locais de trabalho, por exemplo? É isso que me apetece perguntar ao meu chefe quando me olha reprovadoramente se chego depois das nove e meia, lançando um irónico «Boa tarde! Obrigada por teres vindo»… O que é que eu tenho, pergunta ele. Ora, diga-me lá doutor, por onde quer que comece?
O médico olhou para o relógio de pulso e apenas disse:
- Desculpe, Vanessa, mas vai ter de começar na próxima sessão. Acabou-se o nosso tempo.
- Mas doutor...
- Ora Vanessa, já sabe as regras... Aponte o que me ia dizer, ponha isso tudo por tópicos num papel e falamos na próxima sessão.
Agarrou na mala e no casaco com fúria e saiu disparada, batendo a porta atrás de si. Ao fim de quase dois meses de terapia continuava a não entender porque é que as sessões tinham de ser interrompidas. Logo quando uma pessoa começava a soltar-se. Sim, porque os primeiros vinte minutos quase não deviam contar. Alguém consegue sentar-se e pegar na conversa exactamente onde a tinha deixado na última sessão? O que sentira na semana anterior nada tinha a ver com o que sentia agora. Era preciso pensar, organizar as ideias, pegar no caderninho e relembrar o que tinha dito. Depois era preciso abstrair-se do mau aspecto do psiquiatra. O lábio superior suado, as unhas demasiado compridas, o blazer de xadrez todo coçado, os dentes amarelos. Não era nada fácil.
Grande ajuda. Mais de duzentos euros por mês. Só de pensar em tudo o que poderia fazer com esse dinheiro até ficava mal disposta. Se ao menos o montante lhe fosse entregue directamente... Mas não era. O juiz fora muito claro: quarenta sessões de psicoterapia num médico escolhido pelos serviços sociais, no final das quais seria submetida a um teste por parte de uma entidade independente, que avaliaria se estava apta a conviver em sociedade. Ainda só ia em oito. Havia dias em que Vanessa não tinha a certeza se a alternativa não teria sido melhor: quatro meses de prisão efectiva. No fundo quatro meses passam a correr. O tédio seria o mesmo, mas com uma vantagem: estaria sozinha. Sem ninguém para lhe encher a cabeça, sem obrigações domésticas, sem ter de decidir o que vai ser o jantar, sem ter de saber onde estão os óculos dos outros, sem a brutalidade do quotidiano.
Lá fora a chuva caía impiedosamente. «Porreiro», pensou, «Vou dar cabo dos sapatos». Encostou-se o mais que pôde à porta do prédio para evitar molhar-se enquanto procurava a chave do carro. Claro que teria sido uma boa ideia, não fossem as pessoas que constantemente entravam e a saiam. Os empurrões, as cotoveladas, os pedidos de desculpa por estar a incomodar, a mão a vasculhar a mala, a apalpar cada objecto, na esperança de sentir o metal da chave ou o cabedal do porta-chaves. Espelho, porta-moedas, batom, pinça, caixa dos óculos, óculos escuros, carteira, telemóvel, comprimidos. A chuva a penetrar na camurça dos sapatos. Não eram apenas uns salpicos. Eram manchas negras, que nunca mais conseguiria disfarçar. Outro encontrão, outra cotovelada e, afinal, a chave estava no bolso do casaco.

É curioso que não haja mais acidentes na estrada. O carro, pelo menos nas grandes cidades, está a transformar-se num catalisador de toda a raiva e angústias que acumulamos ao longo do dia. Aceleramos com os olhos vidrados no semáforo que teima em não mudar. Travamos com a mesma fúria com que gostaríamos de ter pisado aquela pessoa insuportável que nos fez perder a cabeça. Buzinamos como se o som que se espalha na rua fosse o grito que temos de guardar. Achamo-nos intocáveis, invencíveis dentro da nossa fortaleza de metal. Ali não ouvimos os insultos, não sentimos o cheiro dos outros, não somos contagiados pela viscosidade urbana.
Vanessa segurava o volante com a mesma força que gostaria de ter exercido no pescoço do psiquiatra. Ou do marido. Ou daquela loura altiva que nem pediu desculpa quando lhe deu com o saco nas pernas ao entrar no prédio do consultório. Como se ela não existisse. Que cabra! Foi arrancada da sua fúria por um sem-abrigo a bater-lhe no vidro. As mãos imundas e frágeis estendidas. Os nós dos dedos em ferida. Era só o que lhe faltava. Detestava dar dinheiro a estas pessoas. Achava mais útil dar o dinheiro às instituições que as acolhem ou que distribuem cobertores e comida. Mas, naquele instante, lembrou-se dos sapatos. Se a chuva faz tanto mal a um pedaço de camurça, o que não fará à alma de quem vive na rua? Viu uma mancha negra a espalhar-se pelo corpo do homem. O casaco cada vez mais ensopado, as gotas penduradas na barba. Tal como os seus sapatos, aquele homem estava irremediavelmente perdido... Deu-lhe um euro e não se importou quando o carro de trás começou a buzinar. O sinal estava verde há mais de três segundos.
Conduziu sem saber para onde. Foi seguindo e seguindo, evitando todas as saídas familiares. Após duas horas, o depósito entrou na reserva e só aí reparou que já não chovia. Podia desligar o limpa pára-brisas. Parou na área de serviço seguinte, sem se interrogar onde estaria. Nem sequer era uma área de serviço. Era uma simples bomba de gasolina de uma estrada secundária e deserta. Reparou que tinha setenta e três chamadas não atendidas no telemóvel. Da filha, da escola da filha, do marido, do psiquiatra, do advogado, da mãe, de Diana. 
«Que histerismo», pensou. Qual era o mal de estar incontactável durante duas horas? Não podia estar simplesmente no cinema? Numa zona sem rede? Ter o telefone no silêncio? Não podia simplesmente desaparecer? Ou fazer desaparecer as pessoas à sua volta? A filha, o marido, a mãe e, sobretudo, a Diana, como se nunca tivessem existido? Não que os odiasse, só que por vezes sufocava só de pensar neles e em todas as rotinas que representavam. Imaginava muitas vezes como seria a vida se fosse órfã, solteira e sem filhos. Poder fazer o que quisesse, às horas que quisesse, com quem quisesse. Poder ir para a cama com aquele gajo giro do outro lado do bar. Ou mesmo com o gajo feio da bomba de gasolina. Não ter almoços de família, Natais cheios de gente, férias de Verão com a casa às costas. Gastar o dinheiro do aparelho da filha numa viagem à Tailândia. Ficar de pijama todo o dia, sem sequer tomar banho. Comer bolachas de chocolate no sofá e não se importar com as migalhas que caem. Uma refeição sozinha. Nenhuma conversa. Apenas olhando a parede em frente durante longos minutos, sem ter de ouvir «O que é que tens?». Como seria? Como seria ser livre? Absolutamente livre?





Opiniões e mensagens de leitores sobre o livro

"Um livro que se devora de uma ponta à outra. Se ainda não conhecem a Filipa Fonseca Silva, deviam conhecer. É uma autora talentosa e escreve uma história bestial." The Thursday Interview

"Acreditem, nunca uma crise de meia idade foi retratada de melhor forma!" The Chicklit Pad

"(...) E este livro é precisamente isto: a busca pela felicidade, o 'grito do Ipiranga' para a descoberta de si próprio e do que quer fazer da sua vida.  http://aminhaleituras.blogspot.pt/201... "

"(...) gostei bastante de como a autora introduziu o tema da repetição dos mesmos hábitos todos os dias, da falta de liberdade em escapar à rotina de todos os dias, receando sempre os juízos de valor dos outros.   http://cronicasdeumaleitora.blogspot.... "

"Quero felicitá-la pela forma como escreve, pois terminei a leitura do livro "O Estranho ano de Vanessa M." e amei, simplesmente. Muitíssimo obrigada!"

"Este livro foi uma lufada de ar fresco, leve e viciante!"

"Recebi o seu livro ontem à tarde e já acabei de o ler. Nunca tinha lido um livro em tão pouco tempo! Adorei! Uma escrita simples, fácil de entender, fácil de ler e acima de tudo muito natural e realista. "

"Nunca um livro me tinha conseguido agarrar desta forma. A história, foi como se eu própria estivesse lá inserida!"






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